
Um cordel para joãosinho trinta
Por João Gustavo Melo

I
…e vai nascer o rei do Carnaval
Sob a bruma misteriosa do encante
Rompendo a barra da noite trovejante
Quando o Sol em Sagitário fez-se umbral
Dos palmeirais a guardar grande portal
Imagem de um reino consagrado
Aos deuses qual presente destinado
Em oferta contra a dor agora extinta
De nome João Clemente Jorge Trinta
Pela folia assim foi batizado
II
A linda São Luís não mais cabia
Nos planos atrevidos do menino
Fez um trato matreiro com o destino
De ter a arte sempre como guia
E foi-se embora navegar com galhardia
Sob as águas revoltosas de Olokum
Protagonista de uma Odisseia incomum
Argonauta nordestino a desbravar
Em pleno ITA anteviu no imenso mar
Traçado enredo nas estrelas do Orum
III
Ao pisar o chão que um dia fez
Tantos heróis forjados em coragem
Com astúcia, navegou em estreita margem
De um Rio, o solo cheio de aridez
Mas quem veria no espelho a limpidez?
Que dos passos suaves do balé
Ou vigor dos rituais do candomblé
No Theatro, movimento sem igual
Viu na luz de uma manhã de Carnaval
A liberdade ao descobrir o que se é
IV
A ópera que tanto lhe encantava
No palco, eis o fato contundente
Era pouco, pois queria impaciente
Outro brilho que na retina cintilava
Alvirrubra emoção já palpitava
Com aquela turba a fazer revolução
Em trincheiras de gênios, explosão
De pura arte que o povo construía
De samba, sonho, festa e fantasia
Virou rei de um reinado de ilusão
V
E assim fez de Eneida o par perfeito
Nobre escriba de paixões fiéis, intensas
Belém, terra e água tão imensas
A inundar de devoção e amor no peito
Depois foi assombrar outro sujeito
Das memórias do torrão ali surgidas
Se da França as lembranças escondidas
Reveladas em pincel branco e vermelho
Salomão refletido em cada espelho
Soberano de miragens esquecidas
VI
Em meio à virada salgueirense
Viu chegada a hora de partir
Na vida, eterna sina de seguir
Como o fez da terra maranhense
Fincou em plena Baixada Fluminense
Falso luxo de um devaneio verdadeiro
Onde lata vira ouro por inteiro
Pelas mãos do artista criador
E no milhar deu na cabeça Beija-flor
Campeã de mais um fevereiro
VII
As glórias da deusa nilopolitana
Bordadas no mais saudoso Carnaval
Dos deuses da África ancestral
Ao paraíso da ilusão breve e insana
O sol brilhou em noite soberana
Fez maravilhas em rimas vigorosas
Se uniram às constelações mais gloriosas
E a Lapa virou Éden na Avenida
Um dilúvio de proporção nunca esquecida
Eram as lágrimas das divindades majestosas
VIII
Mas foi numa manhã de imensa glória
Quando irrompeu a revolução de fato
O Mendigo de um reinado abstrato
No concreto virou nobre e fez história
Na virada da própria trajetória
Foi profeta, pivete, meretriz
Banhou-se em opulento chafariz
Para lavar este país tão desigual
A censura fez seu Cristo imortal
Na peleja contra tantas mentes vis
IX
Fez o samba ocupar uma lacuna
Ao saber enxergar o próprio deus
Da missão de dar voz aos filhos seus
Na passarela da vida fez tribuna
Desnudou a nudez e a fortuna
Preparou-se para um intrépido motim
Deu o braço a Bosch, Carroll e Bakhtin
Carnavalizou brasilidade em belo mote
Trepou a aflita Alice em seu cangote
Em frágil ponto de luz deu-se o festim
X
No ano em que não habitou um barracão
Viu seu berço alvirrubro extasiado
O velho ITA que trouxe ao Rio entusiasmado
Aquele menino enxergou que sua missão
Era a festa, irrenunciável vocação
Fez de Tereza guerreira e heroína
Viu que sempre há de ser a própria sina
Vestir de alvirrubro o povo de Benguela
Fez Debret, pintou pobre aquarela
O mal espreita, mas a vida é serpentina
XI
O corpo que ofertou ao Carnaval
Já apresentava sinais de esgotamento
Mas a mente, essa sim, tal qual bom vento
Soprou-lhe outra ideia genial
O revés que poderia ser fatal
Transformou-se em uma força sobre-humana
Tirou a cor de tudo que emana
Os mitos de onde brota a criação
Das trevas fez-se a luz em expansão
Driblou a morte, essa fera caetana
XII
No triunfo da vitória festejada
O retorno veio em tom consagrador
Voltou a dar à luz o esplendor
Mitologia, drama, samba e batucada
Em outra noite de arte consagrada
Jogou-se livre nos braços de Orfeu
Ao seu povo que em delírio recebeu
A poção misteriosa de Anita
Subiu à esfera celestial bem mais bonita
Ao inferno mais sombrio ele desceu
XIII
Ao mudar novamente de bandeira
Foi buscar nos escritos do profeta
Um mistério que de certa forma afeta
A memória coletiva brasileira
Pois eis que na apresentação derradeira
No milênio que já se inaugurava
Um homem a voar ali botava
Em uma geringonça zuadenta
Deixando a plateia toda atenta
Na manhã que espantada despertava
XIV
Fez seu nome na academia tricolor
Ao realizar o sonho de uma gente
No brilho da pedra reluzente
Colocou-a entre as melhores com vigor
Garimpou um Brasil de alto valor
Mas no ano seguinte a derrocada
Por uma ideia vã, mal lapidada
Reviveu outra derrota tão doída
Inspirações desgastadas na avenida
Sem efeito a quem jogou no tudo ou nada
XV
Na obra derradeira, a tormenta
Navegando por mares tenebrosos
Onde o azul e o branco gloriosos
Encontram a tempestade turbulenta
O corpo combalido desaguenta
Incompleto, o brilho vai cedendo
Ao ocaso, vai então desvanecendo
Até ver-se apagar completamente
O monarca sai de cena tristemente
O reinado então vai se desfazendo
XVI
Mas dizem que para vê-lo despertar
É só cravar no touro a nobre espada
Na memória, a adaga prateada
Fará o tempo de folia retornar
Na trajetória à mão de recordar
Revolverá a grande obra genial
O povo o fará deus imortal
Na magia de quem crê na eternidade
Que rufem os tambores da saudade
Vai renascer o rei do Carnaval!
(João Gustavo Melo)