Reflexões – pamplona, mestre da REVOLUÇÃO VISUAL DO CARNAVAL CARIOCA
Por Helenise Guimarães*
Pesquisar a trajetória de Fernando Pamplona é compreender uma parte fundamental do carnaval carioca onde se inserem duas instituições importantes do Rio de Janeiro: a Escola de Belas Artes e a Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro. Sua importância é inegável nas transformações do carnaval carioca, como podemos avaliar nas palavras de Sergio Cabral:
(…)atuava na decoração dos Bailes Carnavalescos do Municipal, uma tarefa que, durante muitos anos, era atribuída com exclusividade a Mario Conde ou Gilberto Trompowsky, dependendo do Prefeito (…) No final dos anos 50, enquanto trabalhava na decoração do Baile de Gala do Municipal, via o desfile das escolas da janela do teatro. Convidado por Nelson de Andrade para fazer o enredo da Acadêmicos do Salgueiro de 1960, Fernando Pamplona entrou para a história como o pai da revolução visual verificada nas escolas de samba a partir daquele ano.(CABRAL:1996)
Fernando Pamplona, atuou como cenógrafo, professor e diretor nos anos 80 da Escola de Belas Artes, vencedor de concursos de decoração de rua e de Bailes de Carnaval do Rio de Janeiro, foi também crítico e jurado do Estandarte de Ouro do O Globo. Sem dúvida, um personagem impar na cultura popular carioca, por sua atuação na festa carnavalesca, e, sobretudo, por sua personalidade forte, independente e revolucionária em atos e ideias. Revolucionário em um tempo de revoluções, intelectual atuante e apaixonado que soube construir os laços que fortaleceriam a ligação entre o o samba e a universidade, os artesãos e os artistas diplomados da Escola de Belas Artes, transformando também a estética e o visual dos desfiles.
Esta revolução começaria no final dos anos 50 quando o casal Dirceu e Marie Louise Nery propôs as primeiras mudanças visuais no desfile, fato que atraiu a atenção de Pamplona, que relata a consciência destas transformações:
“Nós realmente entramos no Salgueiro depois do Dirceu Nery e houve uma revolução que sempre digo, nós tivéssemos vivido ou não ela viria, porque eu acho que no progresso do mundo o homem é muito importante, quando ele atira a primeira pedra e ela causa a revolução, mas ela acontecerá independente do homem. Se não tivesse havido Arlindo Rodrigues, Joãozinho Trinta, Pamplona, Maria Augusta, haveriam outros, porque é mais ou menos como o ovo e a galinha, o material ajuda a progredir a solução técnica e ela exige que haja novos materiais para que você possa fazer a revolução estética.” (Fernando Pamplona em entrevista para a autora)
Como professor do Curso de Cenografia da Escola de Belas Artes, representante de um segmento intelectual e cultural diferente daquele a que pertenciam as escolas de samba, tornou-se um dos maiores mediadores entre o discurso popular (Escolas de Samba) e o discurso erudito (Escola de Belas Artes), não só por suas atividades pedagógicas, mas por sua atuação no Salgueiro como carnavalesco e defensor de novas concepções de criação do carnaval.
Como carnavalesco foi um artista criativo, antecipando o modelo de profissional que se consolidou nos anos 70, trabalhando inicialmente sem remuneração e com limites de tempo para execução, bem diversos daqueles hoje conhecidos, e desempenhando um papel que inicialmente marcaria muito sua posição, o de mediador. Seu trabalho foi marcado pela extrema paixão que nutria pelo Salgueiro, aguçada pela competição ferrenha com as outras escolas, o que também explica o fervor com que defendeu seus enredos e propostas plásticas. Fora dos carnavais, sua crítica e conhecimentos foram respeitados, porque viveu intensamente os vários aspectos do mundo do samba enfrentando com coragem os desafios que compreender a dinâmica da cultura popular propunham,
A maioria das publicações sobre os anos 1960 em diante, que versam sobre carnaval de escolas de samba, obrigatoriamente citam Fernando Pamplona como a figura principal da transformação do desfile – e do carnaval carioca como um todo – e também se refere a equipe que com ele trabalhou no Salgueiro e da qual saíram Carnavalescos ainda hoje atuantes. Esta associação é uma constante devido ao impacto causado como podemos constatar, nas palavras de Ferreira:
“A grande “ousadia” salgueirense seria então, um desvendamento desta relação entre erudito e popular e uma colaboração clara entre elas. A partir daí o processo começa a se acelerar e já no ano seguinte (60) um novo e importante personagem entra em cena: Fernando Pamplona. (…) Pamplona e sua equipe ao assumirem o carnaval e desenvolverem o tema Quilombo dos Palmares, tiveram que agir como mediadores convencendo a comunidade da escola do caráter inédito, não só do seu enredo, mas principalmente de seus figurinos.” (FERREIRA:1999:pag.117/118)
Este papel de mediador, entre a cultura erudita, dos ateliers de cenografia, escultura e figurinos da EBA, e a cultura popular representada pelas escolas de samba, é desempenhado por Pamplona ao levar para os barracões de forma objetiva e sistematizada, conhecimentos artísticos, técnicos e históricos, além de uma nova linguagem plástica e posicionamento do desfile, que já abandonara o caráter “marginal” de seus momentos iniciais para se transformar aos poucos em uma manifestação popular com características de grande espetáculo.
Fernando Pamplona a partir da década de 60 começaria a incentivar seus alunos a participarem das atividades profissionais do carnaval, inicialmente levando-os a trabalhar a elaboração dos projetos, em seu próprio atelier, até que carregou uma equipe diretamente para o barracão do Salgueiro. Tinha uma metodologia própria, que estimulava a competição entre os alunos e entre os próprios colegas de profissão:
“(…) lembro quando provoquei o David Ribeiro, o Adir Botelho e o Fernando Santoro para concorrerem no carnaval e serem meus adversários, e dei na Escola de Belas Artes uma aula de como deveria ser uma decoração de rua (…) patrocinei a equipe de Liana (Silveira) até com material para concorrerem contra mim, eu achava que era obrigação do professor não esconder segredos e sim criar gente com possibilidades de competir.” (GUIMARÃES:1992)
Tal metodologia sem dúvida foi benéfica, já que o caminho havia sido aberto pelo mestre Quirino Campofiorito e aproveitado em larga escala pelo professor Pamplona. A Escola de Belas Artes proporcionava aos seus alunos uma formação artística e técnica especializada, mas que também incluía o conhecimento cultural. A prática do trabalho de carnaval enriquecia este aprendizado, mas era importante o estimulo dado pelos mestres.
Fernando Pamplona era um dos professores de Artes Decorativas (…) com Quirino Campofiorito, e como era do Salgueiro, era muito aberto a essas coisas de carnaval (…) então ele contagiava os alunos, e nisso entrava tudo, cor, forma, criação, passava o conhecimento na prática e convidava os alunos a irem às Escolas de Samba observar pessoalmente (…) (GUIMARÃES: 1992)
Assim, nos anos 60, o barracão do Salgueiro tornava-se uma espécie de “faculdade de artes paralela”, e até hoje os barracões continuam absorvendo e contribuindo para a formação profissional de muitos artistas e alunos da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. A diferença fundamental, que marca o grupo de Fernando Pamplona é que havia um cunho experimental no trabalho realizado, inédito em toda a história do carnaval carioca, unindo elementos do mundo da “academia universitária” aos profissionais de uma arte considerada “popular” e realizada de forma artesanal. Muitos destes alunos de nível universitário prosseguiram como Carnavalescos e por sua vez continuariam criando novas equipes com seus próprios alunos da EBA. Este processo de profissionalização, nos investigamos na dissertação de Mestrado “Carnavalesco, o Profissional que “faz Escola” no Carnaval Carioca”, apresentada no Mestrado de Historia da Arte da Escola de Belas Artes em 1992, revelando nas três décadas subsequentes, 1970, 1980 e 1990 que os profissionais oriundos do grupo de Fernando Pamplona continuariam estabelecendo novos paradigmas de leitura visual do desfile, tão fortes que foram capazes de alterar a estrutura do desfile, o tamanho de suas alegorias e fantasias e transformar seu espaço cênico num espaço de grandes dimensões para abrigar o que se convencionou chamar de “mega-espetáculo”.
Fernando Pamplona e os artistas da EBA desempenharam papéis de mediadores nas redes de relações das diversas correntes culturais (BARTH, 2000) a que estavam sujeitos. Interagindo entre si e com a sociedade, criaram estratégias que contribuíram para a permanência da festa carnavalesca. Suas alianças foram fundamentais para estabelecer novas regras para os rituais agnósticos que compõem o carnaval carioca, permitindo assim novas expressões artísticas.
Analisando dois campos de representação, os da produção dos desfiles de escola de samba e das decorações urbanas e de interiores, nota-se que um de seus componentes mais importantes é a espetacularização.** Entre os diversos processos criadores, a concepção sob a forma de projeto se apresenta como referência de método de desenvolvimento. Acrescente-se aqui a consolidação do modelo de trabalho em equipes e o estabelecimento de uma sistemática muito semelhante à produção industrial e teatral.
O carnaval carioca é um conjunto de manifestações historicamente consagradas que atravessaram longos períodos, sendo o século XX marcado pelas definições dos vários perfis desta festa. Pamplona tem seu nome eternizado tanto nos desfiles do Salgueiro quanto nas grandiosas ornamentações urbanas que embelezaram as ruas do centro da cidade na segunda metade do século. Transitando no campo das competições carnavalescas, trouxe a temática da cultura africana tanto para as ruas quanto para os enredos dos desfiles salgueirenses, e ate mesmo para o interior do teatro Municipal do Rio de Janeiro. (GUIMARÃES:2015) Mestre de uma arte onde o sentido da coletividade esteve presente em todas as situações, soube impor com sensibilidade e densas narrativas a cultura popular que tanto defendeu. Com uma metodologia didática marcada por sua personalidade sedutora compartilhou experiências e saberes com estudantes e seguidores, em todos os campos onde desenvolveu suas atividades.
Seus trabalhos como decorador e carnavalesco sem duvida contribuíram para firmar as alianças das instituições envolvidas com os poderes públicos para a conquista efetiva dos espaços festivos da cidade, sobretudo na segunda metade do século XX. Essas alianças que não ocorreriam apenas por questões de mobilidade social de atores e organizações carnavalescas, situações identificadas na ascensão das agremiações e na produção das ornamentações urbanas. A própria cidade se torna cenário e paisagem lúdica demarcando fronteiras e espaços da folia, e atuando também ela própria como a grande mediadora de sua festa engalanada.
*Helenise Guimarães é professora associada 3 da Escola de Belas Artes/UFRJ, Doutora em Artes Visuais pelo PPGAV/EBA/UFRJ. Pesquisadora de carnaval, festas populares e cultura popular, líder do NesCaFe, Nucleo de Estudos de Carnavais e Festas (CNPQ)
**Para conhecer a historia das ornamentações urbanas no Rio de Janeiro ver: GUIMARÃES, H. M. A Batalha das Ornamentações: a Escola de Belas Artes e o Carnaval Carioca.(2015)
Referencias
BARTH, F. O Guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro:Contracapa, 2000.
CABRAL. Sergio, – As Escolas de Samba do Rio de Janeiro:Ed. LUMIAR,1996 CANCLINI, N. Culturas Híbridas, estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: EdUSP, 2003.
FERREIRA. Felipe., – O Marques e o Jegue: estudo da fantasia para escola de samba.Rio de Janeiro: Altos da Gloria:1999.
GUIMARÃES, H. M. A Batalha das Ornamentações: a Escola de Belas Artes e o Carnaval Carioca. Rio de Janeiro:RIOBOOKS:2015.
GUIMARÃES, H. M. A Escola de Belas Artes no Carnaval Carioca: Uma relação secular e a revolução nas escolas de samba. Arquivos da Escola de Belas Artes, Rio de Janeiro, v.16, n. 16, p.73-87, 2003.
GUIMARÃES, Helenise. Carnavalesco, o Profissional que “Faz escola” no Carnaval Carioca. Dissertação de mestrado,PPGAV/EBA.UFRJ 1992.